Neste poema, Drummond imagina uma conversa póstuma com seu pai no dia em que ele faria aniversário:
Como um presente
(…)
Em verdade paraste de fazer anos.
Não envelheces. O último retrato
vale para sempre. És um homem cansado
mas fiel: carteira de identidade.
(…)
Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.
Guardavas talvez o amor
em tripla cerca de espinhos.
Já não precisas guardá-lo.
No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.
Como um presente (poema completo aqui), de Carlos Drummond de Andrade, se inicia como uma reflexão do filho na data do aniversário do pai, já morto. Ele relembra o último retrato do pai, seus olhos estriados e as mãos enrugadas do senhor já idoso, o aspecto cansado. O pai agitado, inquieto, finalmente está calmo, imóvel e essa contradição o impressiona. O poema é a conversa que nunca houve entre o filho e seu pai, que era homem de poucas palavras.
A força do pai, seu poder, os olhos que jamais derramavam lágrimas, o amor nunca demonstrado e a falta de sorrisos, que assombravam o menino, podem ser finalmente compreendidos de outra maneira: não são só a expressão de um pai severo, frio e distante, mas a expressão de um homem de seu tempo e sua classe, criado numa sociedade patriarcal, hierarquizada e opressora. Num mundo caduco, as relações de amor, família e sociedade se dão também de maneira torta, com indivíduos tortos de alguma forma.
Esse entendimento permite uma dupla redenção pela poesia: do pai, limitado pelo seu tempo e história, e do filho, que se liberta da mágoa até então guardada. O poeta consegue pela primeira vez conversar com o pai, já morto, e ligar-se a ele, senti-lo presente e compreendê-lo. Assim, o que o filho dá a seu pai como um presente no dia em que ele faria anos é a possibilidade de libertação, ainda que apenas após a morte, é a possibilidade de sorrir, ainda que no escuro.